Milan Kundera escreveu no seu livro “A Identidade” que os amigos são as nossas testemunhas do passado, o nosso espelho, permitindo-nos olhar-nos através deles. Por isso a amizade torna-se indispensável para o bom funcionamento da memória e para integridade do próprio eu. Escreve ainda que a amizade funciona como uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano fica desarmado. No entanto essa aliança só se cria quando ambas as partes valorizam o que está a ser construído, o que, como sabemos, muitas vezes não acontece.
Cada vez mais os comportamentos relacionais evidenciam egocentrismo, unilateralidade e negligenciação do outro. Talvez o produto de uma sociedade cujas expectativas e conceitos de êxito pessoal e social têm bases profundamente materialistas. A compulsão de corresponder a essas expectativas leva a que muitas vezes as “amizades” se apresentem contaminadas até por sentimentos de inveja. “Envy is a drive which lies at the core of man’s life as a social being, and which occurs as soon as two individuals become capable of mutual comparison.” (Helmut Schoeck). Não é, por isso, de estranhar que o conceito de amizade nos surja hoje algo esvaziado e até corrompido.
What are friends?
Friends are people that you think are your friends
But they're really your enemies, with secret indentities
and disguises, to hide they're true colors
So just when you think you're close enough to be brothers
they wanna come back and cut your throat when you ain't lookin
(-"If I Had" - Eminem )
Tamanha descrença é obviamente retórica, mas a verdade é que os amigos de todas as horas vão escasseando, os amigos das horas difíceis são uma espécie em extinção e, em compensação, os amigos das horas fáceis são cada vez mais ubíquos. Em expansão parecem estar os chamados “amigos da onça”, os falsos amigos… verdadeiros inimigos. Precisam de nós porque nada lhes sobrou de amizades anteriores, estão sempre prontos a estabelecer novos relacionamentos porque não sabem (ou não lhes dá jeito) conservar os antigos, muitas vezes nem conseguem relacionar-se com o seu próprio eu. Precisam do nosso tempo, do nosso calor, dos nossos ouvidos, do nosso ombro, do nosso mundo, dos nossos afectos. Manipuladores, facilmente se tornam irascíveis, quando não agimos em conformidade ou, de alguma forma, interferimos com as suas pretensões.
Não é, pois, de espantar que surja o conflito, já que nem todos somos seres manipuláveis e miméticos. É verdade que o conflito traz geralmente consigo o desamor, a revolta, a mágoa e muitas vezes, fracturas ireversíveis, sendo, por isso, geralmente encarado como uma situação indesejável e a evitar. Há contudo conflitos que devemos assumir em prol da nossa liberdade, da nossa afirmação e do nosso crescimento enquanto pessoas. Por mais que nos custe, algumas das nossas vivências relacionais introduzem nas nossas vidas as figuras do ex-amigo, do candidato a ex-amigo. Quando nos recusamos a aceitar essa inevitabilidade, acabamos confrontados com a nossa cobardia, ao ter de olhar para aquele ex-amigo que ainda não sabe que já o é. E mesmo que essa pessoa tenha deixado de merecer a nossa estima, devemos a honestidade a nós próprios, aos nossos amigos verdadeiros e de longa data e aos valores da amizade tal como a desejamos viver.
“The only way to have a friend is to be one”